Meus carros: O Fusca Laranja

laranja

Fui às ruas para gritar pelas “Diretas Já”, estive bem perto do palanque montado no Anhangabaú, vendo lado a lado Lula e FHC, Montoro e Covas, Ulysses soberano, todos unidos numa luta pela democracia, pelo fim da ditadura militar. Deu no que deu, a morte repentina da esperança e a ascenção de um dos ícones da ARENA, assumindo a presidência depois de uma estranha manobra, virando a casaca a favor do poder, mais uma vez, José Sarney.

A inflação fazia parte da nossa vida, mas com o governo Sarney atingiu patamares insustentáveis, surgiu o Plano Funaro, sumiço de mercadorias, empréstimos compulsórios, poupança desvalorizada, o que custava $1,00 no início do dia, chegava à noite custando $10,00. Tentávamos nos iludir, tanto que às vezes acreditávamos na reposição de salário que chegaria no final do mês, aumento sempre insuficiente. Sentíamos como náufragos, afundados, lutando por um pequeno gole de ar da superfície, mas logo arrastados de volta para as profundezas. A tão aguardada “abertura” era apenas um refresco para iludir os eleitores, os modos e costumes da ditadura continuavam presentes, como puderam comprovar os alunos da PUC que tentaram assistir “Je Vous Salue, Marie”, desafiando a ordem do coronel bigodudo, num início de ano letivo, e vivenciaram mais uma invasão da truculenta polícia federal que tentou acabar com a festa. A confusão foi imensa, os policiais viram a massa de alunos e desistiram, poucos para tantos. Era minha estréia nos corredores da universidade, um movimento que chegava a me assustar.

Depois de uma promoção no BCN, motivada pelo reconhecimento da minha habilidade no teclado, que permitia operar com facilidade uma máquina de Telex, achei que seria bom cursar Contabilidade, empurrado por minha mãe que sonhava em ver o filho formado e com um bom cargo na instituição. Mas via minhas economias cada vez mais corroídas pela inflação. O amargo lucro que recebi do “Fusca azul pavão que nunca foi meu” se perdeu no complicado efeito da desvalorização da moeda. Precisava ganhar mais para conquistar o meu sonho.

Mais uma vez caí na sedução do meu pai. O velho havia montado uma oficina de borracharia, mas dizia que precisava da minha ajuda. Oferecia uma série de vantagens e de ganhos para que eu largasse meu emprego no banco e fosse ajudá-lo. No começo, resisti. Mas ele me obrigava a trabalhar nos finais de semana, me deixando exausto, sem descanso depois de uma longa semana dividida entre escritório e faculdade. Me pagava a metade do que recebia com a minha mão de obra, consertando pneus. Não era pouco. Os pneus sem câmara de ar eram restritos aos carros novos, raros naquela época. O mais comum era os pneus esvaziarem por câmeras desgastadas, com remendos mal feitos que vazavam com facilidade, poucas vezes furavam com pregos. O movimento era intenso.

A ambição falou mais alto e acabei abrindo mão do meu emprego e largando a faculdade, partindo para uma ilustre carreira de borracheiro. No começo, como todo começo, tudo foi bem, e os ganhos eram suficientes para deixar os dois lados, pai e filho, satisfeitos. Dividíamos também aquele Fusca ex-Telesp, que já figurou por aqui. Mas não tardou para aparecer os desentendimentos. O carro era dele durante a semana inteira, servindo para a locomoção de casa até o trabalho, onde eu era apenas passageiro. Nas tardes de domingo, quando finalmente me livrava da pesada carga de trabalho, ficava livre para uns passeios com o carrinho. Toda a segunda-feira de manhã, quando ele dava a partida, conseguia ouvir barulhos que eu nunca percebia, me culpando por todos os defeitos que não existiam. Não podia aceitar aquilo calado e respondia, sem muito respeito, não o deixando esquecer que o meu azul pavão tinha sido injustamente vendido.

Um dia, cansado de tanto me ouvir e provavelmente preocupado com as minhas ameaças de comprar uma moto, meu pai chegou na borracharia dizendo que tinha visto um Fusca numa loja de carros e que, se eu gostasse, poderia fechar o negócio que ele me emprestaria a diferença. Corri para a loja, pronto para aceitar qualquer coisa que aparecesse, desde que tivesse rodas e saísse do lugar.

O carro tinha sido fabricado em 1975, com mais de 10 anos de uma vida bastante sofrida, refletida numa carroceria toda desengonçada, com amassados, assoalho enferrujado e um motor cansado. A cor era difícil de engolir, um laranja, bem forte, que podia ser reconhecido a quilômetros de distância. Olhei com cuidado, balancei a polia do motor e vi uma boa folga, dei a partida e depois de algumas golfadas de fumaça, funcionou. UAU!!!! Gritei de satisfação!!!! O carro era meu!!! Amor à primeira vista.

Senhores, o Fusca Laranja foi meu primeiro carro, com direito a nome estampado no documento, para que eu pudesse rodar livremente, pelo menos enquanto ele aguentasse.

Com o carrinho, passei por um monte de histórias. Impossível registrá-las agora, prometo que volto a contá-las. Me cobrem, tem aquela vez que viajei pela primeira vez, à noite, sem documentos… Tem aquela vez que me perdi de madrugada na desconhecida zona leste da cidade, dando carona para umas garotas da faculdade… Tem aquela vez que o cabo do acelerador quebrou e me obrigou a passar a noite no meio da rua, em pleno carnaval, sem roupa, sem dinheiro e sem comida… Tem aquela vez que…

Aguardem.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ahhhhh
Ficou com gostinho de quero mais...
Não vou esquecer e vou cobrar !

MAs cá pra noissssss essa sua vida dá um belo livro!!!!
Um grande abraço e um otimo feriado
Adriana

Anônimo disse...

Ahhhh Luciano...
Essa sua vida dá um livro heinnn
Tenho adorado suas histórias.
Vou cobrar as outras historias viu!
Um abração
Dri